A invenção da cantora
Ivan Mattos

Ao longo das mais de 500 páginas da biografia de Carmen Miranda, uma obra primorosa do gênio de Ruy Castro, revela-se um apurado panorama da história do nascimento, criação e futura evolução do que é ser verdadeiramente uma cantora no Brasil.
Emerge da história de Carmen muito mais do que uma simples biografia, ou uma sequência de fatos cuidadosamente apurados. O que se pode perceber é que foi esta pequena grande mulher, nascida em Várzea de Ovelha, ao norte de Portugal, mas brasileira de alma, quem moldou para sempre o que seria uma grande cantora brasileira, reconhecida mundialmente.
Até então, não havia a persona da cantora criada por Carmen. Foi ela quem inventou ser cantora no Brasil na mais absoluta acepção da palavra. Criou o repertório, a mise-en-scène, os figurinos, os fãs clubes, a postura, os requebros.
Sem ter muita noção, criou a presença de palco, que podia ser sentida até pelo rádio nos tempos pré-televisão.
Carmen Miranda pode ser considerada, sem sombra de dúvida, a mãe de todas as nossas cantoras.
Como não enxergar Carmen em Elis, Gal, Bethânia, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto ou Vanessa da Mata? Todas, de uma forma ou de outra, beberam na fonte da artista, seja através de seu repertório, de sua presença, de seus adereços, requebros e maneiras que ainda hoje vingam até mesmo em Ana Carolina.
A partir de Carmen se podia criar um jeito de ser diferente, marcante, absolutamente original. Todas elas pagaram seu tributo à mestra, com certeza. Mostraram no palco que descendem de uma linhagem sagrada de artistas.
Carmen inventou a popularidade, a muito custo, exigiu respeito, salários justos, compositores criando para seu jeito de cantar. Inventou a cantora-atriz que inspirou Elis, Bethânia, Rita Lee, Clara Nunes.
A sombra de Carmen é imensa. Seu valor, nem tão reconhecido; é o de uma inventora. Inventou que uma mulher por ser artista, não é uma prostituta. Que uma cantora pode ser bem paga e ganhar mais do que os homens.
Carmen despertou ódio e inveja de muito barbado. Como sobreviver sendo apenas o músico que acompanhava Carmen Miranda pelos teatros e cinemas de Nova Iorque?
Difícil tarefa para os machistas Aloysio de Oliveira ou Vadeco. Uma mulher ganhando fortunas, arrancando aplausos, engrossando uma plateia enorme de admiradores, assinando contratos com os magnatas de Hollywood. Mostrando que tinha bossa, carisma, ginga, criatividade. Não era fácil.
E Carmen vivia na plenitude o ato de ser uma artista-cantora. Desfrutou ao máximo da sua invenção. Calcou para sempre uma imagem que não definhou nem passados 50 anos de sua morte.
Teve seu dinheiro roubado, suas propriedades, seus balangandãs, foi explorada, espoliada, mal-amada, trabalhou demais, até a exaustão, mas ninguém podia lhe roubar a delícia que era ser Carmen Miranda.
E isso só ela podia ser. Uma artista cortejada e invejada pelos maiores ícones de sua época. Era tão segura de sua criação que se oferecia prontamente para ajudar diversos artistas em Hollywood a se caracterizarem como ela em suas imitações em filmes e espetáculos.
Ninguém mais podia ser Carmen Miranda. A mulher que inventou o jeito de cantar mesmo sem ser compreendida.
Misturando português e inglês criou uma linguagem própria. Era compreendida mesmo cantando em língua nenhuma. Seu borogodó, como ela dizia, era o que importava.
Mas cantava bem, muito bem. Foi nossa primeira grande cantora. Tão forte que influenciou até Ney Matogrosso em sua fase Secos e Molhados.
Como não enxergar Carmen em Caetano Veloso e Gilberto Gil no auge do Tropicalismo? Vestiu Leila Diniz, em Tem banana na banda, inspirou Marília Pêra, Betty Faria, Djenane Machado, Sandra Bréa, Ney Latorraca e Nanini. Miguel Falabella.
Teatro e cinema no Brasil têm até hoje Carmen Miranda em sua folha de pagamento. Uma artista imortal em todos os sentidos. A mulher que inventou que as cantoras brasileiras eram as tais. Taí, ela fez tudo para o Brasil gostar dela.



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