Uma viagem pela Itália

Ivan Mattos
Transcrito do
Jornal do Comércio/Porto Alegre
edição de 27/11/09



O turismo cultural vem se afirmando atualmente como uma das práticas mais requisitadas para quem quer usufruir muito mais de uma viagem. Acumular milhas, conhecer 17 países em 20 dias, cruzar por cidades sem se inteirar do mínimo de sua história, já são posturas descartadas para a maioria dos viajantes do século XXI.
Há quatro anos, a professora de História da Arte, Tânia Bian segue um roteiro próprio para conduzir uma média de 30 alunos por museus e locais históricos da Europa. Depois de dissecar Paris, Bélgica, Holanda, Grécia e Turquia acaba de acompanhar seu grupo à Itália.
Cumprindo um roteiro artístico-cultural, a professora titular dos Cursos Integrados de Artes da Pro-Reitoria de Extensão da PUCRS costuma dar verdadeiras aulas ao lado das obras de arte que são objeto dos seus cursos. Suas explicações costumam calar os mais experientes guias locais que se tornam novos alunos e confessam desconhecer certos fatos e detalhes. A excelente Marcela Ortiz, em Roma, ficou boquiaberta ao saber que a Loba Capitolina, símbolo da cidade, é uma obra etrusca que jamais teve os irmãos Rômulo e Remo na sua criação original. Os dois meninos, completamente desproporcionais, foram acrescentados muitos séculos depois, para dar sustento à lenda do nascimento de Roma. Nesse ritmo de informações segue a viagem que se inicia por Milão onde o destaque é a Pietá Rondanini, de Michelangelo, obra inacabada, mas deslumbrante.
O Cenácolo, ou a Santa Ceia, no antigo refeitório do mosteiro de Santa Maria delle Grazie exige silêncio e quinze minutos de visita. Imagem mais do que colada em nossas retinas, o impacto de sua visão naquele espaço quase que de oração, é inesquecível para o mais empedernido ateu. Deixa-se o local quase que flutuando, imaginando-se Leonardo da Vinci naquele espaço pintando um dos afrescos mais lindos do mundo.
Para retornar à realidade, só mesmo visitando a Galleria Vittorio Emanuele e receber um banho de civilização, moda e esplendor que habita seus corredores. É impossível não reparar que além da primeira loja da Prada que ainda está ali, o McDonalds repousa em uma esquina com seu logotipo em preto e dourado. Aqui, não cabe nem mesmo discutir se o mundo reconhece o fast-food em sua elegante roupagem milanesa. Nessa hora aquele é o tom certo do Mc.
A galeria nos conduz à Catedral do Duomo em seu flamante mármore, suas torres, pináculos, suas incontáveis esculturas, suas portas, tudo o mais é mergulhado pela imponência, beleza e religiosidade do local. Que também é de oração. Mesmo que o mau jeito dos guardas milaneses vá te empurrando para fora da catedral, pois o excesso de contingente atrapalha a missa que está começando.
Veneza prosperou sobre as águas do mar e se tornou um dos destinos dignos de figurar naquelas listas de se ver antes de morrer. Seus canais, suas casas de aparência úmida, suas gôndolas, janelas, portas, sacadas, tudo deslumbra. A vida na cidade transcorre como as gôndolas navegando vagarosa e calmamente por suas águas que já testemunharam relatos de conquistas, rotas de especiarias, de metais, canais por onde a história escoou. Ali, tudo continua vindo de barco, desde a alimentação até a retirada das toneladas de lixos deixadas pelos turistas. Aliás, Veneza tem a taxa de lixo mais caro do planeta. Por aqui não há carros nem bicicletas. Anda-se a pé por suas ruas estreitas, para atravessar suas pontes, para ver seus palácios, chegar a seus restaurantes. Veneza merece ser vista de todos os ângulos possíveis e imagináveis. De suas águas, de dentro de uma gôndola, do vaporetto ou de um táxi, que ali é uma lancha. Do alto do Campanário da Piazza di San Marco, onde a vista é arrebatadora sempre há um novo ângulo novo de suas cúpulas, seus edifícios antigos, suas praças. Em uma esquina estão os Tetrarcas, escultura saqueada de um palácio bizantino em 1204. Mais a frente, o Palazzo Ducale, a Academia e o original do Homem Vitruviano, o Café Florian, a ponte dos Suspiros. Bares, lojas, restaurantes, vitrines com vidros de Murano. Máscaras de Carnaval. Roupas de grife, souvenirs. Há tudo para todos os bolsos. Só não há argumentos para se deixar Veneza para trás. Nem mesmo acenando com o próximo destino: Florença. Singrar pela última vez o Gran Canale, fixar na retina os palácios que o margeiam, as primeiras gôndolas da manhã, o ir e vir dos vaporettos e o desembarque em terra firme. Num último ato, uma camiseta listrada é adquirida para lembrar que ali os gondoleiros usam aquele uniforme e que apenas uma mulher exerce essa profissão.
Florença é mesmo o museu à céu aberto a que todos se referem. A cidade que foi o berço do Renascimento registra mais obras de arte magníficas e mentes brilhantes do que qualquer outra época ou lugar na história. Não é exagero. Tudo ali respira arte e história. A professora-guia relembra que aqui o Renascimento tomou corpo e irradiou-se por toda a Europa. Tirou Deus e colocou o homem como o centro do universo. E materializou esta ideia no David, de Michelangelo. Conta-se que quando a imponente obra foi chegando à cidade, o povo foi imediatamente se apaixonando e aplaudindo a estátua. Até se tornar um símbolo da vitória de um gênio sobre um imenso bloco de mármore que ninguém tinha coragem de enfrentar. Florença é assim mesmo superlativa em tudo. Da Capela Médici ao Palazzo Vecchio ao esplendor da Galleria Palatina no Palazzo Pitti, projetado por Brunelleschi, como residência urbana de Luca Pitti, um banqueiro florentino, e que foi comprado em 1539 pela Família Médici, com sua infindável coleção de pinturas, paredes cobertas de Ticianos, Tintorettos, Murillos, Bronzinos. O Tondo de Rafael. Uma sucessão de belezas. A Ponte Vecchio com suas centenas de lojas de jóias, a Galleria degli Uffizi, com sua vasta coleção de arte renascentista, incluída aí a célebre Medusa, de Caravaggio e os impressionantes quadros Primavera e O Nascimento da Vênus, de Botticelli.
Chegando à Roma, Carlo, o motorista do ônibus fretado, lembra que o Hotel Savoy, onde iremos nos hospedar, fica na Via Ludovisi, perto da Via Veneto, berço de todo o movimento conhecido como La Dolce Vita. Além do filme de Fellini, a dolce vita italiana pode cruzar com você no Harry’s Bar, em algum dos hotéis charmosos da região, ou até mesmo ser levada para casa em um ímã de geladeira ou em uma camiseta. Bem prosaicos. O que importa é se deixar levar pelo clima cosmopolita da Cidade Eterna que se apresenta deslumbrante em sua noite que esconde mistérios e uma aura de glamour cinematográficos. Quase três mil anos de história garantem material suficiente para qualquer professor de história da arte se deliciar a cada esquina. Começando pelas escadarias da Piazza di Spagna, a caminhada pelo centro histórico de Roma reserva momentos de puro êxtase para quem olha para todos os lados e se depara com fontes, estátuas, caminhos belíssimos. Dobrar uma esquina e ter a Fontana di Trevi e suas águas trazendo de novo o mestre Fellini de volta à memória e Anita Ekberg se banhando naquela cena que podemos reconstituir mentalmente. A Piazza Navona com seus músicos, pintores e restaurantes tem um charme especial, não só pela fonte de Bernini que retrata os principais rios do mundo, mas pelo ar de dolce far niente que se instala nas mesas cobertas pelos umbrelones que ficam cheias de turistas. A hora do almoço pede que se abra o cardápio do Dolce Vita, restaurante plantado na Piazza Navona.
Falta de imaginação? Apenas vontade de prolongar um pouco mais o clima aprazível do momento e se inserir na aura de cinema que o local propicia. Há que se ver o Pantheon, com sua abertura no teto que até hoje desafia a engenharia moderna, o Fórum, em suas ruínas que parecem se erguer a cada instante compondo novamente o centro da vida política, econômica e religiosa da Roma republicana. Os roteiros se multiplicam da noite para o dia. Impossível deixar de se ver o Coliseu em sua imponência. O Museu Capitolino com sua coleção fantástica, a Igreja de Santa Maria Della Vitória, com o Êxtase de Santa Teresa, outra obra de Bernini, o Moisés, de Michelangelo, originalmente criado para o túmulo do Papa Júlio II e que acabou na Igreja de San Pietro in Vincoli. Se o mestre bateu ou não no joelho da obra, ninguém sabe. Mas como dizem os italianos, si non e vero e bene trovato.
Sempre há tempo para bruschetas, paninos ou um saboroso spaghetti ao sugo. Ou uma refeição perfeita no La Rampa, onde o funghi porcinni grelhado e a melanzane alla parmigiana são de comer de joelhos. O queijo pecorino ou o parmigiano caem bem em qualquer sanduíche que leve o autêntico presunto di Parma. É só escolher o Pinot Grigio e se deliciar. Apenas uma pausa para chegar ao Vaticano em sua grandiosidade, com suas longas galerias de obras de arte e o momento de clímax com a visita à Capela Sistina, o teto pintado por Michelangelo e as paredes por ninguém menos do que Signorelli e Botticelli. Precisa dizer mais?
Alguém comentou que somos mais divertidos em viagens. Sem dúvida, como não ser mais interessante vendo tudo isso, provando esses sabores, visitado museus e palácios, percorrendo canais, ruas, vias, praças repletos de histórias e acontecimentos.
Sem esquecer da presença fundamental da professora Tânia Bian com sua memória prodigiosa e seu conhecimento inesgotável. Como não ser a mais interessante das criaturas, pelo menos por duas semanas?

fotos da viagem

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